terça-feira, dezembro 18, 2007

Entorpecidos de vida ou Do vício

O desafio da vida é o de vivê-la intensamente... o ressuscitado carpe diem de Sociedade dos Poetas Mortos. Ir à floresta para sugar a essência da vida, expulsar e deixar apodrecer o que não é vida, para não correr o risco de, ao morrer, descobrir que de fato não vivi... a frase adaptada de Henry David Thoreau[1], o mesmo do importante texto Desobediência Civil, talvez seja uma bela missão de vida.

Dessa provocação defronta-se com o vício pela vida ou por aquilo que nos circunda, pelo nosso entorno, o nosso microcosmo – por mais macro que tentemos transformá-lo. Pessoas, animais, livros, músicas, práticas esportivas, entorpecem a nossa vida de sentido. Adoçam o cotidiano. Fazem-nos sentir mais vivos, mais nós mesmos. Paradoxalmente, às vezes, nos possibilitam fugir de nossa rotina, como se um universo paralelo de refúgio mental se abrisse a cada momento, aliviando o peso das atividades costumeiras, como uma busca permanente daquilo que de fato somos, da nossa essência.

É justamente da confrontação de nossas atividades rotineiras com tais momentos que emerge a tensão da necessidade de satisfação do vício pela vida o que, para que esta possa fazer sentido, implica, necessariamente, em buscar que cada dia seja superado em satisfação, em ganho pessoal, em experiência, em prazer, em sentir-se bem, pelo de amanhã.

Não se trata de uma busca histérica de aproveitar melhor fisicamente o dia, mas de fazê-lo valer mais. Atribuir às práticas ativas, de reflexão ou de contemplação maior valor para que, necessariamente, tragam maior prazer. É poder conviver com pessoas, atividades, situações, objetos que afastem a sensação de que falta algo, que erradiquem a possibilidade de sensação de um espaço vazio, mínimo que seja.

Quando percebemos tais espaços insípidos, significa que nossos vícios pela vida estão pulsando e nosso dever conosco, para não corrermos o risco de não termos vivido é de sugá-los e, por conseqüência, deliberadamente, viver.
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[1] "I went to the woods because/I wanted to live deliberately./I wanted to live deep/and suck out all the marrow of life/ To put to rout all that was not life,/and not, when I had come to die,/discover that I had not lived.

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Acorrentados ou Celebridades


Dia 03 de dezembro, Palhoça, região metropolitana de Florianópolis: a imprensa, subitamente comovida com a situação carcerária brasileira, caótica há mais de duas décadas, flagra presos acorrentados em frente à Delegacia de Polícia. Sim, um município do sul do Brasil, em Santa Catarina, “uma terra de mil jeitos. Jeitos de natureza e jeitos humanos” – ao menos é o que diz o site (www.sc.gov.br/conteudo/santacatarina/turismo/contrastes/index.html).

O Estado do “quarto maior” parque industrial do país acorrenta seus presos na rua. Como bichos. O fato, segundo a notícia, tragicomicamente, é festejado pelos próprios acorrentados, celebridades da desgraça. Qual a razão de tal bizarra alegria? Lá dentro, em uma cela para QUATRO pessoas, DEZESSETE presos se amontoam, dividem espaço, mau cheiro, um vaso sanitário, tuberculose, pulgas, sarna, vidas e desventuras.

Em toda a grande Florianópolis estima-se que 250 pessoas estão presas em delegacias. O que se explica haja vista a miserabilidade do estado catarinense: que não exporta, que não tem turismo, que não tem indústrias... Claro que se tal fato ocorresse no interior do Piauí seria caso de preocupação. Mas naquela terra, pela prosperidade, penso ser muito difícil haver lotação de delegacias ou cabresto de presos. Inevitável. Para tratar do assunto, somente com doses de raiva ou de ironia.

Em 1998, a ONG Humans Rights Watch publicou um relatório denominado “Brasil atrás das grades”. Tratava-se de uma pesquisa realizada em 1997 e 1998 por Joanne Mariner, em co-autoria com James Cavallaro, que teve por objeto a análise in loco de quarenta estabelecimentos penitenciários, nos estados do Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo e Brasilia-DF.

E há quase dez anos, a anamnese carcerária levou ao diagnóstico de que o Brasil descumpre a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que nestas ou em outras palavras ditam que toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. O Brasil é ilegal!


Porém, Delegados, Promotores e Juízes, em sua maioria, afirmam que não lhes resta alternativa, já que “a lei deve ser cumprida”. Se o sujeito furtou, deve ser preso, afinal, o Código Penal prevê pena de um a quatro anos para quem pratica tal espécie de delito! E aí, vem à lembrança uma música de Raul Seixas (Ouro de Tolo), em que ensina:


“E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial,
Que está contribuindo com sua parte
Para nosso belo quadro social”


Perfeito!! Sob o discurso da legalidade nega-se a própria legalidade do Estado. Ou seja, o cumprimento da lei é exigido apenas do indivíduo. Poucas vezes se exige do próprio Estado o respeito às leis. Quando a prisão não tem condições de “hospedar” em condições minimamente adequadas à dignidade do sujeito, não pode “abrigar” o indivíduo. O Estado não aprendeu que pela redução da população carcerária resolve-se o problema da superlotação e o executivo economiza seus gastos com prisões.

Então, “respeita-se a lei” encaminhando um infeliz ao cárcere pelo “perigosíssimo” delito de tentativa de furto de um telefone celular e nega-se a ele condições mínimas de dignidade. Certamente, a danosidade social gerada pelo furto tentado deve justificar tal atrocidade. Atrocidades estatais denunciadas já por Marat. O revolucionário francês denunciava o poder estatal como um mal em si mesmo, predestinado à violação dos direitos naturais.

Um Estado que desrespeita a lei está condenado ao descaso de seu povo com a legalidade. Marat, mais uma vez, afirma que o Estado deve cumprir suas obrigações sociais para que os indivíduos respeitem as limitações legais. O respeito à dignidade humana é uma obrigação social do Estado, positivada nos Tratados e na Constituição, aliás, é em torno desse conceito que ela se fundamenta.

Finalizando, já peço desculpas pelo mau humor, mas já que se falou em Raul Seixas, talvez outra estrofe da mesma música sirva para que nos compreendamos melhor:

"É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa dez por cento de sua
Cabeça animal!!!!

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Entre sonhos e pesadelos ou da saúde mental.


A noite chega e o relógio sinaliza: ou corre-se para a cama, ou o dia seguinte começará com a dolorosa sensação de que o nosso corpo está pesado demais para se erguer. Estranho. Ao mesmo tempo em que dormir parece uma perda de tempo, não queremos nos desvencilhar do estar alheio ao mundo, ou melhor, estar vivendo o mundo dos sonhos.

Só eles explicam a nossa necessidade de dormir mais do que o tempo biologicamente necessário à recomposição física. A dificuldade de enfrentar a gravidade em pé.

Quantas vezes buscamos desesperadamente voltar ao mundo dos sonhos para, da primeira fila de um cinema particular, assistir qual o final traçado pelo nosso roteirista inconsciente naquela história perdida. Às vezes até conseguimos. Será que conseguimos?

Um amigo tabagista havia conseguido livrar-se do vício. Fazia seis meses que suas aflições, angústias e prazer não eram incandescidas pela rouca brasa do cigarro. Certa noite, via-se, no sonho, em um lugar paradisíaco. Sentado. Só. A observar aquela linda paisagem e desfrutar do prazer que a nicotina lhe conferia. Subitamente no imaginário, deu-se conta que não fumava mais. Acordou. A sensação de angústia que esmagava o seu peito era brutal. Queria o sonho de volta para sentir o prazer da sensação perdida. As férias do vício acabavam ali. Era dever acender um cigarro, imediatamente.

Assim, nosso inconsciente brinca conosco, sonha-se com pessoas queridas perto de nós, com sujeitos que nunca vimos ou que temos uma relação distante, com fatos aparentemente reais, conectados ou não, com histórias de detalhes sem sentido (ao menos aparente), com situações doces e outras nem tanto. Tal suave brincadeira, contudo, é fundamental para a nossa saúde mental, a fim de que possamos suportar cada vez mais as pressões do cotidiano, para que se possa superar limites, obstáculos e, até, imperativos que o mundo real nos traz.

Cultive o sono e seus sonhos, inclusive os ruins, anote-os. Quando se acorda no meio da noite, suando, é salutar puxar o caderno, a caneta, e escrever o que nos levou a essa sensação. Aliás, se fizéssemos isso mais seguido, teríamos melhores condições de compreender melhor a nós mesmos.

Sonhe muito. Bons sonhos! Ah, mas não se esqueça: não desista de transformar os bons em realidade.