quinta-feira, agosto 27, 2009

Por trás da lei.


Amanheceu cinza. Denso. Onofre chegara cedo. Vestiu a casaca vermelha com botões dourados, as calças pretas e o distintivo que lhe dava a importância que, enquanto fulano, nunca tivera.

Duílio esperava na fila desde os primeiros sopros do dia. Da brisa úmida e quente. Pesada. Após algumas horas em pé, na fila, chegara a sua vez. Trazia consigo um travesseiro.


Onofre perguntou o nome do preso e a pena. Duílio respondeu: Victor. Perpétua... Era a primeira vez que se dirigia ao presídio após seu filho, Victor, ter sido condenado a passar o resto da vida gradeado.

- O que trazes?

– Um travesseiro.

Onofre examinou o presente. Sorriu e negou-se a receber. Chamou o próximo. Duílio, cabisbaixo, se foi.


O inverno se iniciava e, na semana seguinte, lá estava ele, na fila, Com um cobertor sobre seu ombro esquerdo. Pretendia aquecer o seu filho. Quando chegou a sua vez, Onofre perguntou:

- Nome do Preso e Pena?

Duílio respondeu novamente. Questionado acerca do que trazia, apresentou o cobertor. Onofre olhou, verificou a qualidade, sorriu, mais uma vez negou-se a receber e chamou o próximo.


Toda semana, o mesmo roteiro com o mesmo final. Somente o que trazia para Victor variava: frutas, roupas, pão, vinho, livros, óculos para a miopia... Anos passaram.


A vida de Duílio se diluía na espera e nas infrutíferas tentativas. Um dia, após mais uma negativa de Onofre, já fraco e velho, caiu. O algoz foi ao seu auxílio e perguntou se podia fazer algo. Em seu último suspiro, perguntou:

- Por que em todos estes anos de prisão, nunca, nada do que eu trouxe para o meu filho, deixaste entrar?

– Porque tudo o que trouxeste era digno.

*Exercício da Oficina de Imitação de estilo oferecida pelo Prof. Luís Augusto Fischer, no Studio Clio, referente ao texto “Diante da Lei”, de Franz Kafka.

Luzes que fitam.

Não sei bem ao certo o que significa Inmax. Talvez seja um nome, uma sigla, uma abreviação, conjugação de palavras ou um termo técnico. Na verdade, pouco se me dá, pois apesar de ignorante em relação ao seu significado, observo o que ele me representa. Significa a permanência.


Feito de plástico branco, retangular, pouco mais de 20cm de altura por 30 de largura, em seu centro se apresenta uma tela. O que ela exporta é o que me importa e o que expõe me expõe. Internamente! Na tela uma luz vermelha traça os batimentos de um coração abatido por um misto de tempo e fragilidade genética. Outra luz, verde, traduz a oxigenação de um sangue enfumaçado.


As luzes do Inmax oscilam e alternam-se na medida em que mais presto atenção nelas, parecem seguir a impaciência do meu olhar. Riem e conversam entre si. Zombam da minha agonia e impotência. Mas, ao que parece, só eu as noto. Ninguém na sala dá muita bola para elas. Com suas máscaras, os médicos conversam entre si e ignoram o que acontece na tela que me perturba. Eu os perturbo.


Mesmo entorpecido pelos anestésicos, não esqueço de Inmax e suas luzes travessas. Aliás, continuo a repará-las. Pois estão lá, e quanto mais alegres, melhor para mim...


A maior arte de Inmax se dá quando suas luzes, parecendo cansadas, resolvem parar de se mover e se transformam em duas linhas perfeitamente retas. Não satisfeito com a linearidade visual, Inmax ainda é cruel a ponto de fazer soar um sinal agudo, contínuo e mortalmente irritante, como se algo de grave estivesse de fato acontecendo.


O que de certo modo me conforta é que, um dia, Inmax também ficará obsoleto.


*Exercício da Oficina de Imitação de estilo oferecida pelo Prof. Luís Augusto Fischer, no Studio Clio, referente ao texto “A preocupação do pai de familia”, de Franz Kafka.

sexta-feira, agosto 14, 2009

Passos que olham.

Há três dias, o fantástico de uma experiência singela e prazerosa me deixou pleno de satisfação.
Pode parecer estranho, mas, simplesmente... caminhei.

Após uma reunião, à qual fora de táxi para não me atrasar ainda mais, resolvi retornar à pé, ou melhor, ir saboreando os meus próprios passos em direção aos meus últimos destinos que aquele dia me reservava.

Fazia frio, iniciava a noite, mas, agasalhado, a sensação do frio no rosto rejuvenescia, energizava-me a cada metro de asfalto, cimento ou pedra que ganhava. Foram uns 2 ou 3 km apenas, mas que muito significam quando não se tem por objetivo fazer exercício ou chegar correndo a algum lugar, mas sim, sentir a cidade. Sim, é isso!

Pela sola dos pés percebe-se o bater do coração vivo da cidade! Sua pulsação... ora intensa, ora tranquila, arritimia e desritimia... mas, fundamentalmente, ritmo... sua musicalidade...

Sem saber, sentia falta daquele tipo de passeio... descompromissado, com tempo, com a possibilidade de perceber detalhes de uma rua que passo seguidamente... tão seguidamente a ponto de vulgarizar a sua existência e não percebê-la. Sim, nossos olhos se esquecem do que sempre veem. Recordo-me do "Paixão de Cristo", de Mel Gibsom, que, de tão violento desde o seu início, leva-nos a deixar de perceber a crueldade humana após dez minutos de exposição.

A velocidade dos nossos compromissos nos impede de olhar, olhar de verdade, de perceber. De notar. E como é belo poder notar!

Pretendo praticar mais!!!