O último gole do café amargo combinava com o final do telefonema. Felício, sentado, olhava para a parede branca. Sentia-se oprimido. Duzentas atmosferas pressionavam seus ombros na direção do centro da terra. O que queriam dele era pesado. O peso arranhava sua garganta, seu estômago; tornava azedo o sabor de tudo o que provava na vida. Ou será que era insípido o que experimentava? Não sabia. Sentia, apenas, que sua visão não era mais tão larga, restringia-se a pontos fixos, sem a percepção do entorno, sem a compreensão do mundo.
Resolveu sair para caminhar. Era seu horário de almoço. Despediu-se rapidamente dos colegas da repartição onde desempenhava seu trabalho sem graça e saiu pela porta. Duas horas depois, nunca mais voltou.
Até hoje sua família e amigos buscam notícias de Felício. Boatos sobre ele são vários, mas nenhum que se possa dar real confiança. Ninguém sabe ou compreende como alguém que sempre parecera tão alegre e entusiasmado com a vida, simplesmente, anonimamente, sumiu...
Seus últimos relatos falavam da tal opressão. O que era tão grave? Perguntavam os amigos e a família, ele dizia que nada de específico. A vida se tornara pesada, o ar era chumbo, as trivialidades não arejavam sua existência com o perfume das flores, mas sim, permeavam com cheiro de enxofre seu olfato cotidiano.
O mais belo se tornara cinza, o mais alegre, ácido, o mais suave, em áspero. Nada mais lhe motivava. Buscava novas atividades como forma de espanar a rotina e ser reconquistado pela vida. Não adiantava, nada lhe satisfazia. Só de ouvir o seu telefone tocar, murchava, afundava
A verdade? Hoje se encontra em um lugar distante na América do Sul. Entre bicos, de tempos em tempos, consegue meios de subsistência. Seu celular não toca mais - aliás, deixara sobre sua mesa, no dia de sua fuga, talvez a sua mais brilhante decisão. Às vezes não tem dinheiro, em muitas sente frio... não freqüenta os lugares charmosos que tanto esteve e nem mesmo mais que cinco livros possui... porém, voltou a ver o sol brilhar, ao menos agora o percebe... ouve os pássaros cantarem, as suas noites são cobertas por estrelas que brilham sem parar... e, ainda, hoje ri, quando vê alguém agoniado, a correr sem parar, como se a querer carregar o mundo sobre os ombros...
Quando a vida é uma ordem
ResponderExcluirÉ, caro mestre, chega um tempo em que os ombros parecem realmente suportar o mundo, como bem o disseste, remetendo inteligentemente a Drummond.
Nesse tempo, quando possivelmente já haviam sido ultrapassas as pedras encontradas no meio do longo caminho, quando talvez já não se maravilhasse mais com o "mundo, mundo, vasto mundo" e já não perguntasse ao José o que se haveria de fazer, o velho Carlos - condenado que estava a ser gauche na vida - concluiu que já não havia motivo para dizer "meu Deus", que já não havia por que dizer "meu amor". Para ele, foi talvez um tempo em que "o amor resultou inútil”, em que os olhos já não choravam, em que as mãos teciam “apenas o rude trabalho” e em que o coração estava seco.
Tudo bem, talvez não tenha sido nada disso e o velho logo tenha deixado de escrever com a pena triste de Álvaro de Campos.
Seja como for, o segredo parece estar precisamente em saber identificar quando é chegado esse momento terrível antes que nos seja dado escrever que “a vida é uma ordem”, sem mistério e sem poesia. Felício soube identificar a sua chegada e despojar-se a tempo de tudo o que possuía – e que o possuía – para, paradoxalmente, reconquistar as coisas realmente importantes que havia deixado pelo caminho e que eram, afinal, as únicas coisas que se poderia dizer realmente dele, condenado que estava, desde o batismo, à felicidade que trazia estampada no nome.
Mas e quanto a nós, Joões, Josés, Felipes? Saberemos identificar o ponto a partir do qual os ombros já não poderão suportar sequer o nosso pequeno mundo?
Ultrapassadas certas fases de necessárias conquistas materiais, suponho que esse seja um dos mais importantes questionamentos que nos haveremos de fazer e que nos é proposto, desde já, pelo teu belo texto.
Continua a escrever daí, que os que te lêem daqui agradecemos. Enquanto enchemos o saco, que vai às costas, com mais um pouco do peso do mundo.
Grande abraço.
J.L.