segunda-feira, outubro 19, 2009

Vida 2 (continuação)

Som alto, jornal aberto sobre a mesa da copa e duas torradas de pão de centeio com cottage e mel, como seu pai costumava fazer desde os tempos em que escalava a cadeira forrada com veludo marrom da sala de jantar e ajoelhava-se para, não só alcançar o que lhe ofereciam, mas, principalmente, para melhor participar do café da manhã e pegar o que nem sempre lhe era permitido. Desde pequena, comandava a mesa.
Tinha mais de vinte e menos de trinta, mas pouco importava a sua idade, ao menos ninguém perguntava, pois sua luz era própria de quem ultrapassa o tempo sem vínculos necessários com ele.
Havia alguns anos que estava longe de casa, de seus pais e de seu país. A vista do mar de Le Moularderie, embora bela, trazia lembranças de casa e seus olhos, insistentes em refletir o mar, às vezes a traíam com uma gota salgada.
Talvez já fosse a hora de voltar.

A Viagem

A tarde se despedia silenciosamente, quando Vicente se deixou cair sobre a lívida colcha de linho. Enfim, sua cama macia no seu horário preferido para o cochilo. Deitou como sempre, com os pés para fora. E adormeceu.

Passada uma hora, acordou num salto. Como esquecera? Iria visitar sua tia-avó, Osmilda. Tinha passagem comprada para a cidade de Rosário do Sul; naquela noite, no ônibus das 10. Procurou o seu relógio e percebeu que ainda tinha trinta minutos para chegar à rodoviária. Pegou a sua velha mochila verde-oliva, com uma pequena bandeira de Cuba costurada à mão, colocou nela o que viu de roupas pela frente, algo para o calor e outro tanto para o frio, e dois livros: “O Estrangeiro” e “O amor nos tempos do cólera”. Correu, desceu as escadas e saiu para a rua. Sentiu uma brisa quente e de odor forte; pensou: "- O vento está de leste!" Entrou em um táxi e, na tradicional conversa de amenidades com o motorista, soube que um forte temporal se aproximava. Ao menos, era a informação prestada por Cléo Kuhn, o que poderia ser considerada uma verdade “meteorologicamente” absoluta.

Na velha rodoviária, entrou no ônibus faltando três minutos para a saída. Sentou-se e na poltrona 13 e pensou: "- Dei sorte, vou sozinho!" Ilusão. Mais um minuto e ingressou no ônibus seu colega de assento. O dono da janela. Após iniciar a viagem, percebeu em uma das poltronas do outro lado do corredor um sujeito de cabelos quase que totalmente brancos e crespos, orelhas grandes assim como o nariz, que cobria parte de um bigode ainda mais alvo que os cabelos. Chamou-lhe a atenção que aquele homem sorria o tempo todo. Mas era um sorriso triste; viam-se os dentes, sim, porém parecia que sorria pedindo desculpas. Percebeu que eram os olhos. Eles é que, na verdade, não acompanhavam a alegria da boca. O sujeito vestia um terno de linho branco e trazia consigo uma gaiola com um pássaro, um louro. Ao seu lado, um sujeito de sobretudo preto, cabelos cor de corvo penteados com gel, para trás, com um cigarro na boca, olhava com a sobrancelha arqueada para o animal que parecia balbuciar algo aparentemente incompreensível.

Com o balanço do ônibus, Vicente adormeceu novamente...

Acordou com o som de uma ruidosa gargalhada. Enquanto adormecera, o dono da janela, um sujeito que aparentemente se esforçava para fazer a sua barba crescer, por mais que as falhas de sua pele se negassem a aceitá-la, começou a conversar com o dono do louro e o homem do cigarro, e rira quando o último dissera que “o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é!” Vicente resolveu tentar interagir, mas era difícil. O dono da janela, que agora usava uma boina vermelha, e o do louro dialogavam num castelhano confuso. O do cigarro tinha um forte sotaque que, ao mesmo tempo em que parecia, revelava não ser francês. Ao menos não puro. E o louro, este sim, só francês. Vicente falava, mas eles não lhe respondiam. Parecia transparente. Resolveu verificar se não estava usando o relógio do “Gemini Man”. Era como se não existisse. Ninguém, absolutamente ninguém, fora de casa, lhe dava atenção. Mexeu nos bolsos e encontrou o seu canivete suíço, abriu e fechou as lâminas algumas vezes.

Finalmente, o ônibus chegou. Desceu na rodoviária e se dirigiu à casa de sua tia Osmilda. Cento e quatro anos. Fora quase freira na Argentina. Morou na Calle Cabrera, em Palermo, onde hoje há uma excelente parrilla denominada, de forma não muito criativa, “La Cabrera”, e carrega até hoje o sotaque portenho. Sentou na sala e iniciou a “charla” com a tia, que lhe contou que aguardava a visita de mais três sobrinhos que ele não conhecia. Rapazes brilhantes, inteligentes e muito respeitados: Alberto, Gabriel e Ernesto. Todos eles, segundo ela, muito diferentes de Vicente.

O tempo passava e na sala apenas os dois. O dia amanhecia enquanto o sono o embebedava. Quando acordou, Vicente tinha sangue nas mãos. Correu para o espelho e viu que sua orelha sangrava. Já passava do meio-dia.

* Exercício da Oficina de imitação de estilo, promovida pelo Prof. Luis Augusto Fischer, no Studio Clio, a partir do texto "O Sul", de Jorge Luis Borges.

Um compositor de palavras

Nos último anos os compositores de palavras perderam sua importância. Se antes eram os donos das palavras, hoje estão mudos. Foram esquecidos pelo tempo. Falo dos tipógrafos. Houve uma época em que a notícia era menos instantânea, podia ser saboreada antes de se transformar em domínio público. E quem detinha o poder de saboreá-la era aquele homem que, com uma destreza luminosa, selecionava as letras responsáveis por contar a todos as informações doces ou ácidas levadas pelo jornal.


Naquele tempo, aliás, havia jornais matutinos e vespertinos. A sede de informação era grande e o prazer no manuseio do papel jornal acompanhado de um bom café era compartilhado pela maioria das pessoas. Mais tarde veio a televisão e, aos poucos, o fascínio pelos impressos diminuiu em medida inversamente proporcional ao desenvolvimento tecnológico e à velocidade da notícia.


O tipógrafo fez fama em um tempo em que se dava valor ao revisor. Vários escritores que mais tarde seriam famosos e respeitados emprestaras seu tempo à correção de equívocos derivados da falta de intimidade de um ou outro repórter com a língua portuguesa. Hoje, da mesma forma, não existem mais revisores. Ao menos é o que parece. De volta ao compositor de palavras, ele desempenhava a sua atividade com dedicação e alegria. Desde cedo limpava e organizava os tipos. Desenvolvera uma técnica de distribuição a partir da maior ou menor utilização das letras. Sabia que a letra “a” era utilizada vinte vezes mais que o “u”; assim como a quantidade de “bês” sempres corresponderia à exatamente a metade, nem mais, nem menos, dos “tês” utilizados em uma edição do jornal. Ninguém era capaz de aprontar a impressão da matriz mais rapidamente que ele. Era imbatível! Ou quase!


Sua destreza não contava com o advento e popularização da informática. Na verdade, zombava daqueles colegas de profissão que aparentavam temor diante da ameaça do que denominava de “tecnotolíces”. Hoje, mora no museu. Divide a mesma sala com um operador de telégrafo, um fabricante de carburadores e três mosqueteiros.


*Exercício da Oficina de Imitação de estilo oferecida pelo Prof. Luís Augusto Fischer, no Studio Clio, referente ao texto “Um artista da fome”, de Franz Kafka.

terça-feira, outubro 13, 2009

Vida

Vida acordou, viu o Sol e sorriu. Ou será que foi o Sol que acordou, viu Vida e sorriu? Pouco importa. O dia sempre começava assim: leve, suave, com um perfume fresco no ar... magicamente iluminado.
Nas pontas dos pés, Vida caminhava para a cozinha, balançava os cabelos e os braços docemente enquanto preparava o café. Os cabelos loiros e lisos, em um emaranhado bonito, caíam sobre seus ombros e teciam um novo bordado na camisola branca de algodão. Enquanto isso, seu pequeno pé coçava delicadamente às costas de sua canela. Só por mania...
As sombras dos móveis da casa ainda eram longas, mas seu dia já começara. Por quê? Porque era assim. Vida precisava de ritmo. De música. Para isso é que vivia, para sentir-se bem.