sexta-feira, outubro 26, 2007

Da incompreensão

Compreender os momentos vividos, os sonhos da noite passada, os gestos, atos, palavras e sinais se constituem em condição necessária à própria auto percepção do ser como sujeito. Tal situação não se altera quando a incompreensão se revela ao olhar do outro, quando a nossa forma de ver, sentir, agir e, claro, ser, não é “lida” tal qual a concebemos escrever. Em verdade, piora.

Paul Virlio disse certa vez (in Velocidade e Política) que o medo é o mais cruel dos assassinos, pois não mata jamais, mas impede de viver. Diria eu que a incompreensão é a mais violenta das exclusões, pois impede ao sujeito ser reconhecido da forma como ele próprio se vê. Uma espécie de espelho de dupla face, em que a imagem refletida do lado externo não corresponde à daquele que nele se reflete.

Quantas vezes a incompreensão de um ato, por mais doce, terno ou mesmo bandido que tenha sido, levou-nos a situações constrangedoras, dúbias, admoestações e injustas críticas. Abstraindo-se da questão do bem e do mal, conceitos que não possuem uma compreensão pura em si, é a inversão e o julgamento do ato que leva ao acre sabor da injustiça.

Quem, criança, nunca foi reprimido indevidamente por um ato que não cometera? Sim, aquela vez fora o vento que, empurrando a cortina, derrubara o vaso de cristal. Apesar disso, o castigo se impunha, como se nós, crianças, pequenas encarnações de Eolo ou Lúlio o fôssemos. E ali sentíamos tal gosto pela primeira vez.

Às vezes não rimos e nos vêem rir, não choramos, mas nos vêem chorar, nos olham, nos julgam e rotulam condutas ou conceitos que se dissociam dos nossos sentimentos, aspirações e finalidades. O julgamento do incompreendido é a concretização da injustiça.

Não raro, somos nós a colocarmos a venda da incompreensão nos nossos olhos e a deixar de perceber, no outro, condições mínimas que o concretizam como sujeito.

Ignorar a condição do outro significa negá-lo enquanto ser humano; negá-lo enquanto vontade; negá-lo enquanto existente. Desconstruí-lo. “Desexisti-lo”.


(Eolo e Lúlio, respectivamente, os deuses do vento nas mitologias grega e romana)

Nenhum comentário:

Postar um comentário