quinta-feira, agosto 14, 2008

A invisibilidade do depois ou Do tempo perdido.

O ponteiro mudo do relógio corrompe segundo a segundo a castidade do próximo momento. O registro dos minutos é curto, pesado, preciso. As horas passam. O tempo, tal qual visualizado por Dali, derrete, se esvai, de certa forma, perde forma e sentido.

Enquanto assombrado com tal velocidade, Felício não percebe a distância entre o que deixa para depois e o que não realizou ontem. O depois é turvo, raro e passa sem ser visto.

E, por isso, guarda na gaveta aquilo que pensa deva ser enfrentado no dia seguinte. O amanhã passa e quando percebe, meses e anos se foram sem que tivesse enfrentado questões e concretizado planos. O silencioso e invisível “depois”.

Inimigo do concreto, forma na cabeça de Felício uma miragem de realização. Deixar para depois é negar a prática. Ignorar o enfrentamento, o estar atento, a solução.

Felício tenta se erguer e a artrose o impede de fazê-lo com pressa e sem dor. Seu corpo não acompanha mais o seu raciocínio e até quando este permanecerá intacto pela crueldade do tempo, não sabe. Dirige-se ao velho armário, abre a porta e, com dificuldade, coloca sobre a mesa a pilha de papéis, antes facilmente manuseada.

Passa a examinar os escritos e percebe anos e até décadas entre o que está ali e a data estampada no jornal de hoje. Vê rabiscos e anotações em folhas de cursos e escolas que não existem mais. Percebe o quão poderia ter evoluído em suas “distrações”, mas não o fez. Percebe-se o mesmo de 60 anos atrás em suas habilidades, agora, ainda por cima, debilitadas pelo caminhar incessante do relógio.

O alarme toca. Quinze horas, hora de se encaminhar para a consulta médica. Felício suspira lentamente, pega a pilha de papéis, recoloca no armário e fecha a porta. Deixa para o dia seguinte a análise mais detalhada dos papéis. E o tempo passa...

Um comentário:

  1. Anônimo3:10 AM

    Boa Felipe!

    No seu último post, você quase havia conseguido me fazer idealizar um Felício modelo de libetação. Hoje, porém, você faz lembrar que a arte imita a vida (ou seria o contrário?). E a vida é feita disso: de contradições não de todo "racionalizáveis", de uma eterna corrida contra o tempo e de uma busca por sei lá quê.

    Segue daí Felício - digo, Felipe! -, que seguimos nós de cá, vendo-te enveredar pela descrição de uma saga que é, afinal, a história de todos nós.

    Abc.

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