Nunca a chegada de um aniversário parecera-lhe tão amarga. A marca do charuto permanecia a mesma há 20 anos, seus reflexos, do ano anterior para o atual, não haviam se deteriorado além dos efeitos naturais do tempo. Intelectualmente ainda era admirado por todos pela cultura e raciocínio jurídicos, pela clareza de exposição e poder de síntese. Percebia que as suas circunstâncias não se diferenciavam muito das que lhe rodeavam quando completara 69 anos.
Mas este ano, havia algo mais. O puro cubano parecia mais amargo e, certas vezes, ardia-lhe a garganta. O tempo passava como que em uma velocidade nunca antes alcançada. A caneta e o computador pareciam não serem mais seus amigos, confidentes e companheiros. Sentia-se mais curvado, mais lento, mais áspero, enfim, menos ele. Percebia que sua carteira de identificação profissional apagava-se a cada dia.
De fato, a única mudança em relação à nossa personagem foi o fato de, aos 70 anos, ter chegado o dia de aposentar sua toga. O temido recesso compulsório chegaria em meio à fumaça e o calor das velas, do doce sabor da torta, do macio beijo de sua esposa, da emoção dos filhos e dos gritos, sorrisos, algazarra e brincadeiras dos netos.
Eram 23 horas e 15 minutos da véspera do temível terrível dia. Resolvera fazer um rescaldo de sua vida e percebeu que pouco se recordava da infância, da adolescência e dos seus tempos de faculdade. Sua memória parecia que se iniciava há 41 anos e quinze dias, no dia em que fora aprovado do concurso de ingresso à Magistratura.
Lembrou-se de casos difíceis, em que suas sentenças foram elogiadas pelas cortes superiores; arrolou, também, seus equívocos e percebera que, efetivamente, na maioria destes, a razão não caminhara ao seu lado. Catalogou as suas sentenças mais importantes, atribuindo tal adjetivo às que lhe deram a convicção de que fora instrumento da justiça.
Não esqueceu os colegas que lhe cercaram na vida, dos amigos e dos nem tanto, dos mais jovens e dos mais antigos e lembrou-se de um conselho dado por um antigo membro de “seu” tribunal no dia de sua posse: - Nunca de esqueças que a tua decisão deve ser tomada como se fosse a última! E que entre capa e a última folha dos autos, existem pessoas!
Sempre seguira tais ensinamentos e, por isso, fora um juiz respeitado e, por que não dizer, amado por onde passou. Por um momento, deixou de sentir o vazio e a dor física da separação forçada.
Mas passou por pouco tempo. Logo depois, voltou a sentir com intensidade ainda maior o gosto amargo e aquele buraco em seu estômago. Somava-se a isso a sensação de ter uma bola de golfe entalada na garganta. Mesmo assim, foi dormir.
No dia seguinte, em sessão realizada no “seu” tribunal, entregou a toga e despediu-se da judicatura. À noite, recebeu os netos e familiares que, apesar dos festejos, perceberam que algo havia desaparecido naquele olhar sempre vibrante e indagador...
Aos 73 anos de idade, ao invés de estar prestes a festejar mais um aniversário, via, além de seus familiares, alguns companheiros de judicatura chegarem lenta e silenciosamente ao seu funeral. Aos poucos seus ombros haviam se curvado ainda mais e problemas de saúde, até então prerrogativa de outros, passaram a fazer parte do cotidiano. Após a compulsória, durara pouco mais de três longos e dolorosos anos.
Sua vida tinha perdido sentido. Não decidia mais as pretensões alheias. Os bajuladores de plantão deixaram de reverenciá-lo. Até mesmo sua família procurava-o cada vez menos. Enfim, perdera a sedução, o poder. Atribuiu sua derrocada ao fim obrigatório de sua função jurisdicional.
Como salientado, fora um grande juiz. Porém, julgara mal a sua própria vida. A decadência não veio com a proibição legal de julgar, mas sim, no dia de sua aprovação no concurso. Naquele momento, esquecera quem era e suas origens; de como era bom caminhar na areia e sentir o calor do sol e o carinho da brisa em seu rosto; de sonhar; de ler poesia e de cantar; de falar e rir de tolices, enfim, de levar a vida sem que ela se confundisse com o cargo que desempenhava. Esquecera que a função pública era passageira e que a pompa e a liturgia não eram suas, mas do magistrado que deixara de ser. Confundiu-se com a função, viveu-a intensamente, mas esqueceu que a vida é muito mais que apenas o cargo que se desempenha.
És muito feliz no que escreve ! Tens o dom da escrita... nos deixa,emocionados !
ResponderExcluirTeus artigos nos obrigam a refletir ! são muito bons
Parabéns
Por que ser� que as pessoas aos poucos v�o deixando de viver? E passam a viver em fun�o do trabalho sem tempo para nada.A vida voa ,a velhice chega e acabou tudo. Parab�ns ,continua escrevendo. Publica,pois est�s ajudando muita gente que te l� e se poe a pensar.Desculpa mas n�o consegui colocar o ~ no poe. Eu.
ResponderExcluirGOSTO MUITO DE LER O QUE ESCREVES. CONSEGUES PRENDER TEU LEITOR E O FAZES PENSAR MUITO. UM ABRAÇO, MARISA.
ResponderExcluirGrande Felipe!
ResponderExcluirMuito bom o teu texto. Bastante lírico, eu diria, e cheio de uma percepção que normalmente só se tem quando já é tarde demais.
Queria contribuir com um comentário apenas: como bem sabes, infelizmente isso não ocorre somente com as carreiras públicas, nem somente com as carreiras jurídicas; é um mal típico desses tempos ditos pós-modernos.
Nesses tempos de onipresença de um consumismo desenfreado, de instantaneidade dos alimentos, de fluidez dos capitais, de interatividade e de superficialidade das mídias, de volatilidade das amizades e de virtualidade dos amores, tudo parece pronto, tudo parece prestes a se destruir. Nesse tempos, em que todas as relações humanas parecem mediadas por objetos ou por imagens reificadas daqueles com quem nos relacionamos, tudo parece ter um preço, tudo parece ser dedutível a uma relação de custo x benefícios, tudo remete a um – valha-me Deus – “sopesamento” entre meios e fins.
Nesse contexto, raras são as pessoas que conseguem manter meia dúzia de relacionamentos duradouros e realmente sinceros. Mais raros ainda são os profissionais que conseguem manter contato com os velhos amigos, caso eles não estejam na mesma profissão, e de lembrar, mesmo em frente ao álbum de fotografias, daquele garotinho que um dia foram, cheio de sonhos impossíveis e de vontades de mudar o mundo. Mesmo entre esses, só muito poucos conseguirão se manter autênticos e autônomos em relação ao profissional sisudo que lhes habita o corpo no horário de trabalho.
Só esses últimos conseguirão rir, com um sorriso ainda largo e sincero, da mesma antiga graça aparentemente sem sentido que viam nas pequenas coisas da vida. Somente esses, nenhum mais, poderão, talvez, um dia, ver em torno do caixão uma roda de amigos a respeito dos quais poderá se lembrar, com detalhes mínimos, dos gostos, dos trejeitos, da forma de rir e de chorar, da opinião sobre a política externa, sobre o futebol de domingo, sobre a literatura de Borges e sobre o gosto amargo que tinha aquele whisky que, quando jovens, fingiam gostar (é possível até que, nesse caso, ignorem o que fizeram os amigos em suas vidas profissionais, mas nunca as suas preferências mais íntimas).
Só esses terão amigos que dirão, na despedida, não um adeus ao “juiz, padre ou policial que tem contribuído com a sua parte para o nosso belo quadro social”, mas um até logo ao amigo de quem tanto se orgulham e em relação a quem nutrem uma terna satisfação por saberem ter compreendido a lição do poeta e de não só ter passado pela vida, mas realmente vivido.
Nenhum mais terá amigos que se lembrarão saudosos, sempre que se reunirem, dos seus grandes feitos e dos seus grandes fracassos, de tudo quanto constituía a sua autenticidade e a sua qualidade de insubstituível (nesses casos, está claro, as qualidades valerão somente para entre os amigos e nunca para o que possam dizer os que se dizem doutores em um qualquer minúsculo campo dos conhecimentos possíveis).
Somente esses esperarão, lá de cima, com a paciência que só um grande amigo pode ter, para que a turma volte a se reunir. Nenhum mais.
Raros são os que param e olham ao redor
o mal desses nossos tempos de