A tarde se despedia silenciosamente, quando Vicente se deixou cair sobre a lívida colcha de linho. Enfim, sua cama macia no seu horário preferido para o cochilo. Deitou como sempre, com os pés para fora. E adormeceu.
Passada uma hora, acordou num salto. Como esquecera? Iria visitar sua tia-avó, Osmilda. Tinha passagem comprada para a cidade de Rosário do Sul; naquela noite, no ônibus das 10. Procurou o seu relógio e percebeu que ainda tinha trinta minutos para chegar à rodoviária. Pegou a sua velha mochila verde-oliva, com uma pequena bandeira de Cuba costurada à mão, colocou nela o que viu de roupas pela frente, algo para o calor e outro tanto para o frio, e dois livros: “O Estrangeiro” e “O amor nos tempos do cólera”. Correu, desceu as escadas e saiu para a rua. Sentiu uma brisa quente e de odor forte; pensou: "- O vento está de leste!" Entrou em um táxi e, na tradicional conversa de amenidades com o motorista, soube que um forte temporal se aproximava. Ao menos, era a informação prestada por Cléo Kuhn, o que poderia ser considerada uma verdade “meteorologicamente” absoluta.
Na velha rodoviária, entrou no ônibus faltando três minutos para a saída. Sentou-se e na poltrona 13 e pensou: "- Dei sorte, vou sozinho!" Ilusão. Mais um minuto e ingressou no ônibus seu colega de assento. O dono da janela. Após iniciar a viagem, percebeu em uma das poltronas do outro lado do corredor um sujeito de cabelos quase que totalmente brancos e crespos, orelhas grandes assim como o nariz, que cobria parte de um bigode ainda mais alvo que os cabelos. Chamou-lhe a atenção que aquele homem sorria o tempo todo. Mas era um sorriso triste; viam-se os dentes, sim, porém parecia que sorria pedindo desculpas. Percebeu que eram os olhos. Eles é que, na verdade, não acompanhavam a alegria da boca. O sujeito vestia um terno de linho branco e trazia consigo uma gaiola com um pássaro, um louro. Ao seu lado, um sujeito de sobretudo preto, cabelos cor de corvo penteados com gel, para trás, com um cigarro na boca, olhava com a sobrancelha arqueada para o animal que parecia balbuciar algo aparentemente incompreensível.
Com o balanço do ônibus, Vicente adormeceu novamente...
Acordou com o som de uma ruidosa gargalhada. Enquanto adormecera, o dono da janela, um sujeito que aparentemente se esforçava para fazer a sua barba crescer, por mais que as falhas de sua pele se negassem a aceitá-la, começou a conversar com o dono do louro e o homem do cigarro, e rira quando o último dissera que “o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é!” Vicente resolveu tentar interagir, mas era difícil. O dono da janela, que agora usava uma boina vermelha, e o do louro dialogavam num castelhano confuso. O do cigarro tinha um forte sotaque que, ao mesmo tempo em que parecia, revelava não ser francês. Ao menos não puro. E o louro, este sim, só francês. Vicente falava, mas eles não lhe respondiam. Parecia transparente. Resolveu verificar se não estava usando o relógio do “Gemini Man”. Era como se não existisse. Ninguém, absolutamente ninguém, fora de casa, lhe dava atenção. Mexeu nos bolsos e encontrou o seu canivete suíço, abriu e fechou as lâminas algumas vezes.
Finalmente, o ônibus chegou. Desceu na rodoviária e se dirigiu à casa de sua tia Osmilda. Cento e quatro anos. Fora quase freira na Argentina. Morou na Calle Cabrera, em Palermo, onde hoje há uma excelente parrilla denominada, de forma não muito criativa, “La Cabrera”, e carrega até hoje o sotaque portenho. Sentou na sala e iniciou a “charla” com a tia, que lhe contou que aguardava a visita de mais três sobrinhos que ele não conhecia. Rapazes brilhantes, inteligentes e muito respeitados: Alberto, Gabriel e Ernesto. Todos eles, segundo ela, muito diferentes de Vicente.
O tempo passava e na sala apenas os dois. O dia amanhecia enquanto o sono o embebedava. Quando acordou, Vicente tinha sangue nas mãos. Correu para o espelho e viu que sua orelha sangrava. Já passava do meio-dia.
* Exercício da Oficina de imitação de estilo, promovida pelo Prof. Luis Augusto Fischer, no Studio Clio, a partir do texto "O Sul", de Jorge Luis Borges.
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